domingo, 2 de outubro de 2011

O sincronismo diário da labuta (Américo Cavalcante)



O despertador do celular tocou pela terceira vez quando ele tomou coragem e, entre resmungos, levantou da cama. Sua noite de sono foi comprometida pelo casal do apartamento ao lado, que não parava de discutir pelos mesmos motivos da noite anterior, da anterior e da anterior. Ele não agüentava mais ser testemunha das brigas daquele relacionamento falido, mas era calmo demais para fazer qualquer reclamação, então apenas deixou o sono vencer os berros e quando finalmente adormeceu, precisou acordar.

No chuveiro ele tentou em vão lavar com água fria o sono acumulado. Devidamente vestido e perfumado, tomou o ônibus e fez o percurso de sempre, observando a movimentação nas ruas, “o sincronismo diário da labuta”, como costumava dizer. Soava inteligente.

“Veja o que os homens fizeram a eles mesmos...”, comentou. Quantas interpretações caberiam naquela frase incompleta? A correta estava explícita em seus olhos cansados.

Desceu um ponto antes, como o de costume, para fazer sua aposta semanal na loteria do bairro e depois seguiu a pé até o mercadinho, onde limpou o chão, as prateleiras... e os sanitários, repetidas vezes até seu turno acabar.

No caminho de volta ele observou o movimento inverso ao daquela manhã e sentiu seu coração encolher de angustia. Lojas fechando, pessoas aglomeradas nos pontos de ônibus, em lotações, bicicletas e a pé. O ciclo vicioso e sofrido que ele abominava. 

“Se eu ganhasse aquele prêmio não teria mais que passar por isso!”, disse ao ser imprensado contra a cadeira do coletivo.

Em casa viu o capítulo da novela das 21h enquanto comia macarrão instantâneo e pensava em como seria bom saber cozinhar, ou melhor, ter alguém que cozinhasse para ele. Ajustou o despertador do celular para tocar mais cedo. Não podia se dar ao luxo de acordar atrasado como naquela manhã.

A parede fina do apartamento, os vizinhos, mais uma noite de sono comprometida.

Ele estava exausto e imune ao banho frio. Foi em passos lentos ao ponto, onde pegou o ônibus de sempre, viu a movimentação de sempre, fez os resmungos de sempre e, como sempre, desceu um ponto antes.

Não chegou ao trabalho naquele dia, nem nunca mais. Seu apartamento permaneceu intacto até que, após três meses de aluguel atrasado, o síndico mandou que tirassem suas coisas. 

Ninguém soube o que aconteceu, mas eu, que escutei seus desejos e frustrações por tanto tempo, desconfio.

Pena eu não ter dito que sei cozinhar...

2 comentários:

  1. Texto FODA meu irmão!!!Lembrei da aulas do meu querido Nilton Rezende...dava uma discussão massa!

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  2. Aahh... valeu, mandinha! Você é suspeita pra falar hein... rsrs... obrigaaadoooo!

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